Quatro dias na bolha que é Singapura
Dec 01 2013
asia, rtw, singapura Sem comentários
Olha… a gente queria ter escrito menos sobre Singapura, mas não deu não. Aperta o cinto e vai com fé.
Uma viagem de 8 horas de trem separa Kuala Lumpur, na Malásia, de Singapura, mas a mudança de ambiente é inacreditável. Apesar de já ter feito parte do território da Malásia, os dois países só têm em comum a presença do mix cultural de malaios, chineses e indianos (sem falar na infinidade de gringos que vão pra lá pra se dar bem), mas em todo o resto entrar no território de Singapura é como entrar em uma bolha.
Pegamos o trem na Kuala Lumpur Sentral pagando só 11 dólares por pessoa pelo assento de segunda classe. E possível fazer o mesmo trajeto à noite por 25 dólares por pessoa em uma cabine com cama. Uma barganha! Até mesmo os locais acharam inacreditável o preço. O casal que nos hospedou em Singapura nem sequer sabia que existia um trem que fazia esse trajeto, ainda mais tão barato, veja só.
Logo na imigração na entrada do país já deu pra sentir o clima tenso de proibições e rédea curta de Singapura. Filas organizadas com muitos seguranças, tudo perfeitamente limpo (vale ressaltar que era uma estação de trem, que normalmente são imundas), regras e multas estampadas pelas paredes do saguão da estação. Todo mundo em silêncio absoluto sem se mexer quase. Deu até medo! Na minha vez, Dani, a atendente da imigração olhou os carimbos no meu passaporte e perguntou a quanto tempo eu estava viajando. Quando respondi, ela perguntou como meu chefe tinha deixado eu viajar por tanto tempo. Gelei! No final das contas era mais curiosidade dela, ela liberou minha entrada numa boa. Mas não sem antes soltar um “nossa, você pediu demissão só para viajar?” com aquele tom de reprovação. Desculpa, moça!
E é assim mesmo por lá, tudo parece girar em torno do trabalho. A população de estrangeiros vivendo pra trabalhar lá é 60% do total, a maioria vindo de outros países asiáticos mesmo, que chegam ao país para trabalhar e juntar uma grana e acabam não voltando mais pra casa. O salário mínimo é altíssimo, perto de 3 mil dólares, mas obviamente os custos de vida também. Segundo um pessoal que conhecemos, o custo de vida para manter uma família com dois filhos por lá é de aproximadamente 12 mil dólares por mês! E pra tirar a licença para dirigir por lá, antes mesmo de comprar o carro, é preciso pagar uma taxinha de 70 mil dólares. Barganha pra eles só se levar em consideração que Singapura tem a maior porcentagemm de milionários do mundo: 1 em cada 6 moradias tem mais de um milhão no banco, mas nem dá pra saber quem é e quem não é, milionários comem em botecos na rua e andam de metrô lá, é bizarro como são mão de vacas mesmo, e não “socialmente conscientes” como aprendemos mais tarde.
Mas não tem como não dizer que a cidade funciona. E funciona muito bem! É impressionante a limpeza do lugar, a boa sinalização e a organização. O transporte público é um dos mais impecáveis que já utilizamos, e com um preço justo pela qualidade que entrega, entre 1 e 2 dólares por viagem dependendo da distância. Para irmos para o aeroporto, que fica a 45 minutos de metrô, pagamos apenas 2 dólares por pessoa. E pra manter toda essa organização, é claro, muitas regras: não pode comer nem beber perto do metrô, não pode atravessar fora da faixa em rua alguma, em alguns lugares tem até regra não escrita de não poder rir alto, não pode nem mascar chicletes em público. E se fizer errado, multa! A multa por comer em local público, por exemplo, é de 1000 doletas. Mascou chicletes e alguém viu… 500 doletas. Ai meu bolso… porque lá multam mesmo, ou multavam e condicionaram bem as pessoas, porque todos andam MUITO na linha.
O que marcou bastante nossa passagem por Singapura foi a interação com os locais. Ficamos hospedados na casa de um casal de vietnamitas que moram lá há 11 anos e que conhecemos durante a trilha no Nepal. Passamos um fim de tarde conversando com eles e eles já nos convidaram para ficar na casa deles, super receptivos! Eles moram em Tiong Bahru, o primeiro bairro planejado da cidade, super tradicional e considerado até meio hipster, mas o que vimos foram só muitos prédios residenciais, grandes poleiros de alto padrão.
Na nossa primeira noite por lá eles nos levaram por um passeio a pé pela Marina Bay, onde tem o circuito de F1. Passamos até pela escultura do Pensador do Rodin que está em exposição no saguão de um prédio, sem proteção nenhuma. Eu, Dani, achei estranho essa ser a escultura original, pois eu tinha certeza que tinha visto a original no museu do Vaticano… pesquisando, descobrimos que a escultura tem 30 réplicas originais!
Na mesma noite, subimos no topo do Marina Sands Resort, aquele prédio famoso como um navio no topo. E o melhor de tudo, de graça! O preço normal para subir é 25 dólares, mas o casal sabia que naquela noite estava rolando um evento por lá e a subida era gratuita, uhul! A vista lá de cima é muito bonita, e é neste prédio que tem aquela piscina que não tem bordas e parece que a água cai na cidade abaixo e as pessoas estão nadando no céu.
O dia seguinte foi dia de encontrar mais locais! Já comentamos em outro post que decidimos ir para Singapura quando estávamos na Suíça e conhecemos um chinês que mora lá. Marcamos de encontrar ele e passamos um dia muito legal juntos! Começamos o passeio dando uma volta por Raffles, o distrito comercial de Singapura. Em seguida eles nos levou para almoçar em Chinatown para experimentarmos o chili crab, um caranguejo apimentado bem típico de lá, e tomar caldo de cana. Achamos o prato muito bom na hora, mas a pimenta quase nos matou no dia seguinte. À tarde fomos com ele no Gardens By The Bay, e fez questão de pagar as entradas caras porque a mãe dele trabalhava não sei onde que dava descontos. Ótimo! Aliás, fantástico!
Gardens By The Bay é simplesmente incrível. Eu, Caio, achei um dos parques mais legais que já visitei. As estufas deles são absurdamente enormes, em formatos de conchas, com plantas separadas por áreas continentais, tudo bem informativo e bem feito. Uma delas inclusive é tão alta que tem uma cachoeira de 7 andares de altura dentro e você passeia por através dela! Do lado de fora eles construíram estruturas tipo árvores do Avatar pra trepadeiras cresceram por elas. Cara, é demais.
Quando já estávamos indo embora, passamos pela concentração de uma corrida de rua, no fim da ponte da esplanada de lá. Ficamos um tempo vendo a galera e pra nós foi um momento nostálgico, deu muita saudade de correr e vontade de entrar no grupo e sair correndo junto. Saindo de lá, fomos encontrar o pessoal da casa e alguns amigos e irmãos deles em um restaurante onde comemos uma sopa de costelinha de porco muito boa.
O irmão da menina nos hospedando estava na cidade junto com sua “equipe” para competir em um campeonato nacional de dança de rua e durante o jantar eles ficaram encantados com a nossa viagem. No final, acabaram fazendo um video entrevistando a gente para incentivar os jovens vietnamitas a viajarem mais. Foi muito engraçado, eles se divertiram um monte às nossas custas! Das nossas conversas saiu até um bordão que eles adoraram e ficaram repetindo muitas vezes durante a noite: no idea is stupid as long as you make it true. É clichê, mas é verdade.
A noite continuou com a galera toda indo tomar vinho e papear em uma ponte perto do bairro de bares boêmios de lá. “Tomar vinho na ponte” não me pareceu combinar nem um pouco com o estilo de Singapura, mas não é que até isso é organizado? Os bares lá são caríssimos: USD 20 ou mais por uma coquetel, então é uma coisa comum entre eles sentar para beber ali fora na ponte turística mesmo. Mas só ali. Em outros lugares é proibido. Estava lotado de gente, não só locais como turistas também. Ficamos lá até 1 da manhã e voltamos andando pra casa, conversando, todos meio alegres menos o Caio que não bebe, hehe.
Dando continuidade a saga de encontros com locais, reservamos um tempinho para encontrar um couchsurfer nativo de Singapura que tinha mandado uma mensagem pra gente uns dias antes nos convidando para um almoço. Ele embarcando para o Brasil em alguns dias e estava apavorado com questões de segurança, coitado. O pior de tudo é saber que as preocupações dele fazem sentido… conversamos bastante com ele e demos várias dicas, acho que no final conseguimos tranquilizá-lo um pouco! Singapuranos são mais “ingênuos” com segurança pessoal na rua do que europeus, vai vendo só o que dá um deles ir visitar o Brasil.
Saindo um pouquinho sozinhos pela cidade fomos conhecer dois museus. O primeiro deles, o Centro de Ciências, parecia prometer pela idéia geral mas foi uma decepção. Caio quase foi embora assim que viu o que era o lugar: muito infantil, péssima organização das amostras que chega a ser caótico, e uma parte grande demais dedicada à ciência de guerra e destruição, o que foi bastante bizarro pra mim, Caio. Já o segundo, Museu das Civilizações Asiáticas, foi animal! Demos muita sorte, chegamos lá meia hora antes de começar um tour com guia grátis, o que foi muito explicativo e fez valer ainda mais a pena. Imperdível e uma ótima referência histórica pra quem está viajando por outros países da Ásia.
No final da nossa estadia na cidade ainda não havíamos encontrado a pulseirinha da Dani, que é sagrada (uma de cada país, obrigatoriamente). Resolvemos dar uma passada na Arab Street, o bairro com influência árabe que é provavelmente o único lugar onde é possível encontrar essas coisas na cidade. Singapuranos mesmo não gostam de andar com penducarilhos. Acabamos comprando a pulseira numa lojinha com artigos colombianos, de um romeno que morou nos Estados Unidos. Tudo isso em Singapura, com todos falando inglês enrolado.
Inglês, inclusive, é uma coisa curiosa lá. Todo mundo fala inglês, e as pessoas que tivemos contato falam inglês muito bem, mas existe um dialeto por lá que é muito curioso, o singlish. Basicamente, é uma mistura de inglês com sotaques e expressões das línguas da região. Por exemplo, em vez de “really?”, com espanto, eles falam “really lé” com entonação e a resposta afirmativa “really!” seria “really má!”.
Como nenhuma visita é completa se não tiver comida envolvida, experimentamos além do tradicional chili crab outras duas sopas que entraram na lista das comidas que precisaremos fazer em casa: double fish e you mian. Double fish é sopa de macarrão asiático com peixe cozido, ervas, alho frito e vegetais e mais peixe, só que frito empanado. A you mian é um macarrão you mian (acho) com vegetais e ovos cozidos na sopa já pronta. Ao contrário do resto da Ásia, é muito difícil encontrar sucos de fruta por lá mas eu, Dani, fiz a festa com os diversos tipos de chá gelado que eles servem. O melhor de todos foi o bubble tea, ou chá com perl jelly como dizem, um chá de origem vietnamita que é servido com bolinhas pretas gelatinosas feitas de tapioca. Curioso e delicioso!
Mesmo sendo rápida, nossa visita a Singapura foi bem completa, como dá pra perceber pelo tamanho do post bem empolgado. Fizemos turismo, conhecemos muita gente local, nascidos no Vietnã ou na China ou em Singapura, experimentamos várias comidas, andamos muito a pé e muito de trem e saímos de lá com a sensação de dever cumprido. Terminamos o último dia andando pelo centro para dar tchau para a “fine city”, onde tudo é perfeito, às vezes até demais e acaba se transformando em multa no seu bolso.
No fim das contas fica esse sentimento meio estranho de Singapura: uma cidade tão certinha que muitas vezes parece artificial demais. Todos só sabem trabalhar 10, 12, 14 horas por dia, só juntam dinheiro, mas tudo funciona bem, e ninguém se lembra de aproveitar a própria cidade. Os nativos até parecem evitar se comportar fora do padrão por pura “pressão” do que tá a sua volta, como se estivesse sempre andando numa loja de cristais. Por outro lado, é o centro financeiro da Ásia, uma das cidades (estado) mais ricas da região e absurdamente diversificada em etnias, línguas e costumes que valeu a pena conhecer. Se quiser saber mais sobre esse sentimento estranho de Singapura, leia sobre o artigo do William Gibson sobre a cidade: uma Disneilândia com pena de morte (sim, é isso mesmo).